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Por tempo indefinido

por Closet, em 04.02.13

(imagem retirada da internet)

"A eternidade é um relógio sem ponteiros"

Desfrutava aquele momento só dela. Um silêncio apenas quebrado pelos jactos de água que lhe acariciavam o cabelo, deslizavam pelo rosto. Extasiada, baixava a cabeça enquanto a água lhe escorria pelas costas. Quente, quase a escaldar. Podia ali ficar por tempo indefinido, pensava. 

7h00 da manhã e o telefone toca aquela música invencível. Acorda para mais um dia ocupado de horas. Num compasso lento inicia a rotina, mecanizada, sempre pela mesma ordem: o banho, a roupa, o pequeno-almoço. 30 minutos de gestos cronometrados. As mochilas, as lancheiras. Mais 10 minutos de correria para sair de casa. O caminho, sempre demorado, entre condutores que se atravessam à sua frente apressados.

- Faz pisca! - grita-lhes. Gesticula. Mais 10 minutos e despede-se dos filhos, apressada porque alguém buzina atrás na fila. O comboio apita antes da hora marcada. Parte. 5 segundos adiantado.

- Partiu adiantado - Resmunga para um passageiro ao seu lado, de idade avançada, que folheia um jornal da semana anterior, indiferente à azáfama de gente que o rodeia.

- E então? - Pergunta-lhe.

- Então? Vou chegar atrasada.

O ancião estica-lhe do bolso um relógio velho, preso por um cordão de metal fino. Agarra-o pouco interessada, apenas por delicadeza. De raspão, acaba por reparar que o velho relógio não tem números nem ponteiros. Uma caixa de vidro redonda vazia. Rapidamente os seus olhos fixam o objecto com atenção, enquanto à sua volta o dia estranhamente escurecia.

- Que se passa? - Pergunta ao ancião que a observava e sorria desdentado. Olha de relance o telheiro da estação, o habitual relógio  desaparecera. No seu pulso os ponteiros giram sozinhos, descontrolados. Tira o seu telemóvel da mala, não tinha hora, nem minutos. Nada.

Caminhou de volta para o carro. De volta para casa. Sentia uma espécie de tontura, como se estivesse perdida. Rompia com o seu corpo entre gente divertida que caminhava na rua, como se a noite fosse dia, e o amanhã não chegasse. Ligou o carro. O relógio era agora cego, enquanto a rádio tocava uma música animada.

Abriu o portão e os filhos correram para o seu pescoço, abraçaram-na. Brincavam na rua sem pressa de se deitarem. Era tarde, pensava. Que horas seriam? O marido esperava-a já em casa, bebia um copo de vinho e levantou-se para cumprimenta-la.

- Tens fome? - Pergunta sorrindo. Não sabia. Respondeu-lhe que o acompanhava. As crianças entraram de rompante e pediram para jogar Wii na sala. Ia responder que era tarde, amanhã tinham de levantar-se cedo para a escola. Mas o seu marido já ligara o aparelho para eles jogarem.

- Que horas são? - Perguntou por fim, quando entrou na cozinha e aterrada viu que todos os relógios piscavam.

 - Horas querida? Que horas? Estás cansada - Responde-lhe afagando o rosto pálido e conduzindo-a às escadas.

- Porque não tomas um banho quente? E depois, vamos ver aquele filme que no outro dia falavas?

As tonturas voltavam enquanto subia os degraus que a levavam ao quarto. Enquanto despia as roupas como dúvidas, que atirava ao chão cansada. A ordem do dia fora quebrada. Desconhecia-se agora. Perdida das referências que a orientavam. Lá em baixo, felizes, agiam como se o agora fosse uma eternidade.

Deixou a água correr, até o vapor quente embaciar o espelho que contemplava. Até não conseguir mais ver os traços marcados da sua face. O tempo era agora água, que escorria abundantemente pelas suas costas relaxadas. De olhos fechados sorria. Podia ali ficar por tempo indefinido, pensava.


 

Tema da semana: "Viver sem relógio"

 

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servido às 01:44


4 comentários

De Closet a 05.02.2013 às 17:50

Muito Obrigada Fátima! Bem-Vinda!

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